A publicação de um ofício da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) trouxe um impacto direto no segmento dos chamados tokens de recebíveis, ou tokens de renda fixa, mas também pode representar uma ameaça para outro ativo importante no mercado: o ether. Ao estabelecer critérios para o enquadramento de um criptoativo como valor mobiliário, a possibilidade ganhou força entre investidores.
O ofício determina que, para um token de renda fixa ser considerado um valor mobiliário - e portanto precisar seguir as regras do regulador para a categoria, sua oferta e emissão -, é preciso que ele possua algumas características específicas. Entre elas, estão a oferta pública em exchanges e tokenizadores e a oferta de remuneração "fixa, variável ou mista" ao investidor.
A CVM cita ainda a possibilidade de representação, vinculação ou lastreamento a direitos creditórios ou a títulos de dívida, o pagamento de juros e amortização ao investidor e a remuneração definida por um terceiro, que pode ser "emissor, cedente ou estruturador" do token. Mas foi o uso do termo "remuneração fixa, variável ou mista" que gerou o alerta.
Desde 2022, a Ethereum passou a contar com o staking, uma modalidade em que os validadores de transação precisam depositar uma determinada quantidade de ether na rede para poderem realizar a atividade. Em troca, eles têm a garantia de recebimento de uma determinada remuneração, variando em relação ao volume de validações realizadas. No momento, os ethers recebidos como recompensa ainda estão bloqueados na rede, mas serão liberados para saque com a atualização Shanghai, em 12 de abril.
Além disso, diversas corretoras de criptomoedas passaram a oferecer serviços semelhantes de staking com o ether, mas nesse caso de forma indireta: o investidor realiza o depósito na corretora, que então envia o ativo para o blockchain. Em troca, o investidor recebe um valor mensal para manter a criptomoeda depositada.
Classificação do ether
Nesse sentido, Isac Costa, professor do Ibmec e sócio da Warde Advogados, acredita que os critérios da CVM "podem sim" ser aplicados para a classificação do ether como valor mobiliário. "No limite, a essência econômica da operação é a oferta de uma remuneração que decorrerá de uma atividade que será exercida por terceiros, o investidor é passivo".
Ele destaca que os arranjos de cada serviço de staking oferecido podem variar, mas a essência acaba sendo a mesma. Além disso, também há uma jurisprudência recente nesse sentido, mas vinda do exterior. A SEC, equivalente à CVM dos Estados Unidos, ameaçou a corretora de criptomoedas Kraken com um processo caso ela não encerrasse seu produto de staking, alegando que ele se caracterizava como valor mobiliário, levando ao fim do programa. A empresa ainda foi multada em US$ 30 milhões.
E o presidente da SEC, Gary Gensler, afirmou em mais de uma ocasião que a existência do staking permitia caracterizar o ether como valor mobiliário, o que colocaria a criptomoeda e sua oferta sob a alçada regulatória do órgão. Entretanto, a definição ainda não é consenso entre agentes regulatórios do país.
"Do ponto de vista do investidor, os tokens eram depositados no serviço oferecido pela Kraken com expectativa de remuneração de até 21% ao ano e, em alguns casos, a possibilidade de não receber nenhum retorno. Em abril de 2022, havia cerca de US$ 2,7 bilhões em ativos depositados para staking na Kraken, que obteve uma receita de aproximadamente US$147 milhões", observa Costa.
Ele explica que, "para a SEC, o benefício econômico esperado pelos investidores era resultado da atuação determinante da Kraken, responsável pela custódia dos tokens e pelo pagamento dos valores. Haveria a oferta de facilidades inacessíveis para quem opta por prover staking por conta própria: o expertise da plataforma em gerenciar o processo, garantia de pagamentos, desnecessidade de valor mínimo de depósito, interface de usuário amigável".
No Brasil, caso o ether ou seus serviços de staking passassem a ser considerados valores mobiliários, os responsáveis pela oferta precisariam seguir todas as regras da CVM sobre o tema. No caso dos tokens de renda fixa, especialistas acreditam que essa adequação provavelmente levará a mais custos para a emissão dos tokens, além de mais tempo para realizar o processo.
Regulação do staking no Brasil?
Mas, mesmo com a possibilidade de enquadramento na nova regra, o professor acredita que será difícil que o ether seja classificado como valor mobiliário, em especial devido ao seu caráter descentralizado. Nesse sentido, ele acredita que o risco maior ficará com as exchanges, que oferecem serviços mais "empacotados" e centralizados, "em que o esforço do intermediário na seleção dos ativos, gestão de risco e dos pagamentos fica mais evidente".
Além disso, não há uma garantia de que a CVM necessariamente realizará esse enquadramento. Costa lembra que o órgão atua "com base na priorização de riscos e na materialização desses riscos", o que indica que, ao menos no momento, ele só iria intervir nesse segmento caso haja uma "provocação pelo mercado em uma consulta ou uma denúncia".
Questionada sobre o assunto, a CVM ressaltou que o ofício aborda apenas "as estruturas atuais de tokens de recebíveis e de renda fixa que foram ou estão sendo objeto de supervisão. Eles vêm sendo ofertados cada vez mais em plataformas (exchanges ou tokenizadoras) com o apelo de investimento, sendo fundamental a orientação da área técnica da CVM sobre o assunto, a fim de mitigar possíveis irregularidades e desvios de conduta".
"Os esclarecimentos da área técnica da CVM se basearam no Parecer de Orientação 40, em que a autarquia consolidou o entendimento sobre a aplicação da regulação de valores mobiliários aos criptoativos. Essas são as informações disponíveis no momento", destacou a autarquia.
Fonte: exame